O que as IAs e o Privacy têm em comum?
É curioso perceber como, aos poucos, fomos normalizando certas coisas na nossa relação com a tecnologia. A inteligência artificial, por exemplo, nunca te chamou de “mano”, nunca te incentivou com um “bora fazer isso juntos” ou te parabenizou como se fosse alguém que realmente se importa com você… certo?
Ou será que não?
Pois é. A IA hoje é treinada pra soar gentil, acolhedora, empática… pra parecer mais próxima, pra fingir que te entende, que sente orgulho, que vibra com as suas conquistas. Mas no fundo, você sabe (ou pelo menos deveria saber) que não tem nenhum afeto real ali, nenhuma emoção, nenhum cuidado de verdade. Apenas um emaranhado de códigos, padrões matemáticos muito bem calibrados para simular algo que, biologicamente, faz parte da nossa natureza buscar: A conexão.
E não, isso não acontece à toa. Não é apenas um capricho dos engenheiros. Isso é puro e simples UX. É design. É mercado. É psicologia aplicada à retenção. São dark patterns. É comportamento humano transformado em dados, em métricas, em engajamento.
Em lucro…
Se uma IA fosse fria, seca, puramente técnica, sem simular a empatia humana, ela assustaria muito, e dependendo até do uso, não seria muito precisa. Ela pareceria inacessível, distante, coisa de nerd ou de pessoa que trabalha em laboratório. Agora, quando ela fala como um amigo, ri das suas piadas, responde com empatia (mesmo que sintética), tudo muda. Você relaxa, você confia, você volta e você se apega.
Mas quem não se apegaria? Ainda mais num mundo onde as conexões humanas parecem esfriar a ritmos alarmantes, não é mesmo?
Mas aqui é onde a coisa fica realmente desconfortável: essa lógica não é exclusiva da IA, e muitos mercados, muitas pessoas já sabem disso, porque essa lógica está em todo canto. E talvez um dos exemplos mais óbvios, e menos falados, seja o que acontece em plataformas como Privacy, Onlyfans e tantas outras que surgem a todo momento.
À primeira vista parece simples, alguém paga por conteúdo adulto, recebe fotos, vídeos, mensagens privadas e é isso, serviço prestado e tudo certo.
Tudo certo? Depende do ângulo que você observa.
Você pode estar vendo apenas a superfície do iceberg. Porque na prática, o que move boa parte desse mercado NÃO É SEXO. É algo muito mais básico, muito mais primitivo, e de certa forma, muito mais triste… É o afeto… afeto e uma dose mínima de poder.
Sim, poder. Porque relações humanas são invariavelmente atravessadas por poder. E manter uma relação real é complexo. Dá trabalho, exige negociação, vulnerabilidade, reciprocidade, escuta ativa, abertura pro desconforto. Requer manutenção.
Só que a equação fica desbalanceada quando você coloca dinheiro. O afeto deixa de ser uma construção e passa a ser uma entrega, uma promessa de garantia enquanto o pix estiver caindo na conta.
É simples: Você paga, e alguém do outro lado responde exatamente do jeito que você quer. Te chama do que você quiser. Fala como você fala e, principalmente, nunca te confronta, nunca te rejeita, nunca te frustra… É afeto sob demanda. É proximidade terceirizada e conexão simulada.
Dá pra perceber como isso não é tão diferente da empatia simulada das IAs? Elas te parabenizam quando você pede para ela analisar seu currículo? Seu portfólio? Exalta seus pontos fortes? Você sempre parece estar com a razão? Você já passou por alguma situação assim, eu sei.
E isso não é discurso contra tecnologia. A tecnologia em si não tem ética, da mesma forma que uma arma sem operador não mata ninguém. O problema não é a IA, nem o Privacy, nem os chatbots. O problema é o humano, é o ego. É o quanto estamos dispostos a terceirizar nossas relações, nossos afetos, nossas conexões e tudo isso simplesmente dá menos trabalho do que lidar com a complexidade de um ser humano real, com o universo particular de cada um de nós, das nossas contradições, dos nossos silêncios, das nossas imperfeições.
Parece carinho… Mas é só UX.
Parece cuidado… Mas é só design
Parece proximidade… Mas no fundo… É para lucro, para nutrir o ego.
E talvez esse seja um dos maiores paradoxos da era digital: A tecnologia nunca esteve tão presente, nunca foi tão sofisticada, tão personalizada, tão próxima e ainda assim; nunca estivemos tão carentes, tão reclusos, tão famintos por conexões que sejam de fato humanas.
Mas é claro, essa é apenas uma reflexão, uma provocação.
De humano pra humano.